Thursday, June 18, 2020

Carlos Caseiro destranca a porta de seu apartamento pelo lado de fora, a porta se abre, ele entra, a porta se fecha.

Segura em suas mãos um pacote recheado de compras do mercado, coisas aleatórias e sem sentido que deixou a atendente curiosa.

No caminho ele tropeça e derruba coisas que estavam sobre a mesa, algumas moedas rodopiam pelo chão, livros velhos se abrem e revelam fotografias escondidas entre as páginas amareladas, o controle remoto ao tocar o solo desperta a televisão, suas pilhas se desprendem como dois filhos fujões que soltam a mão da mãe e desaparecem no carpete, enquanto o canal de notícias mostra a previsão do tempo. Parece que uma tempestade se aproxima da cidade.

 ...

 O sol se põe no horizonte escarlate. No parque, as sombras das árvores crescem como garras de uma fera. Os prédios na penumbra exibem as primeiras janelas iluminadas, e os animais noturnos saem de suas tocas.

À noite, é possível sentir o cheiro da cidade, e escutar o ronco de sua dormência, num sono agitado enquanto os pesadelos tomam forma.

A miséria gosta de companhia, por isso os bares estão lotados.

Os ratos dividem a rua com os carros, as baratas esperam o momento em que deixarão os esgotos e andarão por entre os passos das pessoas sem serem notadas.

O mal parece pairar no ar. Como uma doença contagiosa. Sendo inalada e tragada a cada má intenção. Uma risada falsa que esconde o nervosismo. Uma máscara no local de uma face.

A falta de coragem faz as pessoas perderem o medo do medo. Mas se esquecem dos perigos da noite, da vulnerabilidade da alma humana e daquilo que se esconde entre as sombras, que se alimenta.

Em algum lugar uma criança chora de fome. Em algum lugar uma decisão errada tem um efeito irreversível. Alguém é subjugado, outro ergue uma taça. Uma pessoa solta o ar que estava preso nos pulmões a tanto tempo. "Não consigo respirar" – diz uma outra antes de morrer.

Uma oração é feita para aqueles que se vão. E para os que ficam, a tempestade começa.

O som dos trovões é ensurdecedor.

 ... 

Carlos Caseiro está bêbado. Não é nenhuma novidade. Ele engatinha pelo apartamento como uma criança que não sabe ainda andar. Nu. Seu pênis balança entre suas pernas e a cada investida ele derruba cinzas de um cigarro nos lábios. A TV ainda no canal de notícias exibe um belo par de seios da apresentadora, ela não sorri pra câmera, parece triste e cansada, o tipo favorito de mulher de Carlos Caseiro, se ele estivesse vendo aquilo ficaria excitado.

Ele consegue ver as pilhas que procurava debaixo do sofá. Reunidas com o controle elas dão o poder que Carlos Caseiro tanto queria; mudar o canal.

Agora a TV exibe um desenho animado infantil. Um rato foge de um gato qualquer.

No sofá. Com um copo de bebida em uma mão, um cigarro aceso em outra, Carlos Caseiro solta uma gargalhada que esconde o que ele realmente sente.

 


Wednesday, June 10, 2020

Carlos Caseiro vai a uma comemoração.

Senta numa velha poltrona no canto da sala e evita o contato casual com outras pessoas. Num comportamento que contradiz o que se espera de alguém que vai a uma festa.

Uma luz vermelha pisca em intervalos curtos e padronizados. Jazz no vinil. A música era boa, mas Carlos Caseiro resmunga pra si mesmo que o volume estava alto.

 

"Havia dentre as mulheres da festa aquela que possuía luz própria, ela tinha cabelos ruivos e usava uma saia curta. Olhos de gata. Me pediu fogo. Ela parece gostar de mim. Mas todas parecem gostar de mim quando estou bêbado".

 

A festa não foi tão boa no final das contas. Na volta pra casa num táxi mal cheiroso Carlos Caseiro observa as pessoas na rua. Velhos bêbados conhecidos, atrapalhando o negócio das prostitutas em busca de dinheiro, jovens sem nada a perder jogando garrafas nos muros pichados.

Há incerteza nos olhos das pessoas. E  tristeza em suas almas. 

 

"No final da avenida vejo as luzes de um parque itinerante, peço para o motorista encostar o carro e faço o resto do caminho a pé enquanto fumava um cigarro e bebia o resto de uma garrafa de vinho.

A música que tocava nas caixas de som do parque oscilava constantemente devido ao equipamento velho e antigo, notavelmente bêbado, eu me sentia dentro de um aquário, as pessoas se moviam em câmera lenta enquanto balbuciavam assuntos ininteligíveis.

O caos era a ordem.

Crianças usavam armas enquanto atiravam em patos para ganharem chaveiros com escrito LOVE, o trem fantasma não metia medo em ninguém, a violência no trânsito era justificada no bate-bate. A Maçã do amor machuca os dentes.

Existe contraste no mundo.

Pessoas ricas e pessoas pobres. Liberdade e opressão. Carinho e dor. Os palhaços seguem com suas piadas, trapezistas arriscam suas vidas, o leão ruge ao ser chicoteado. Andando na corda bamba seguimos vendados, norteados por nossos instintos rumo ao fim da linha. Uma pulga atrás de cada orelha, sempre flertando com o abismo. O público aflito torce por sua queda ao som de tambores".

 

Uma roda gigante de um parque qualquer brilha no horizonte escuro, as vezes se está no alto, as vezes por baixo, até que o passeio acaba.