Hoje estava passeando na praça da minha cidade favorita.
E não estava bêbado ainda, embora estivesse tentando há
algum tempo.
Me sentei em um banco qualquer. Os pombos logo chegaram. Esperando
por comida. Migalhas. Mas o que eu tenho a oferecer? Além de amor e um pouco de
bebida? Nada! Ou quase nada! Da mesma forma que chegaram saíram, voando para
perto de um casal jovem, que jogava pipocas.
Bem lá no fundo atrás dos prédios e longe da cidade eu podia
ver as montanhas cobertas por arvores verdes e o céu azul, um mundo puro, eu
pensei, sem intervenção humana, ou quase nada. É assim que o mundo era, antes
do homo sapiens destruir tudo, e construir coisas horríveis depois.
Um carro dobra a esquina em alta velocidade, os pneus cantam
no asfalto, é um carro grande, desses importados, e passa com o som alto de uma
musica que eu não conheço e não gosto, não se preocupa com a faixa de
pedestres, a mãe precisa segurar a criança para que ela não seja atropelada, a
criança segurava um sorvete com a outra mão, a bola do sorvete cai no chão com
o solavanco da mãe, era de morango eu acho, agora a criança chora sem parar, o
som do choro corre as ruas mesmo quando ela sai da vista, a mãe vai ficar
estressada, vai chegar em casa e descontar no marido e não vai transar na hora
de dormir, coitado do marido, vai ter que sair para uma espelunca qualquer, vai
inevitavelmente se embebedar, bater o carro no passeio quando chegar em casa,
brigar novamente com a mulher e dormir na sala, a criança vai acordar cedo para
ir a escola e vai ver o pai deitado no sofá com a gravata amassada e a camisa
fedendo a bebida e a cigarro, e aquela imagem do pai derrotado vai marcar a sua
infância e mudar o rumo da sua adolescência, mas ela não sabe, porque não
aconteceu ainda, isso tudo porque um carro não respeitou a faixa destinada aos
pedestres.
Antes de levantar ainda tenho tempo de observar algumas
pessoas se divertindo na pista de patinação de gelo, alguns rapazes tentam com
dificuldade ficar em pé, as pernas tremem involuntariamente e eles têm que
segurar na barra lateral pra não cair, e no meio da pista uma garota loira de
cabelos curtos patina e se move com graça, deslizando com suavidade e deixando
as pernas soltas dentro de uma saia rodada xadrez vermelha, ela não nota os
jovens na pista, ela não nota ninguém, isso eu consigo notar, é um momento de
pura concentração, um momento de pura individualidade, onde ela está sozinha
com seus pensamentos, e segue circulando na pista, num ciclo solitário.
Saio caminhando entre as pessoas que me incomodam e esbarram
em mim a todo momento, ou já estou ficando tonto e não consigo andar em linha
reta, aí tenho que ira pra rua, disputar lugar entre os carros e as charretes
de passeio, uma delas passa por mim, o cavalo segue em frente alheio aos
carros, ele, o cavalo, começa a defecar mas não se importa em parar de correr
em frente e segue cagando e andando pra tudo, e eu achei isso muito interessante.
Por fim acabei perdido e sem rumo, decidi ir até o meu bar
favorito, do outro lado do centro da cidade, mas quando cheguei ele já estava
fechado.
E em casa pensei em tudo o que eu tinha visto naquele dia,
nas montanhas macias e no céu azul, no carro importado, na menina que ainda
iria se traumatizar, na loira patinadora que mesmo sem saber deixou-me
excitado, e pensei que talvez, se deus existe, não era assim que ele planejava
o mundo quando ele o criou, em algum momento o homem desviou-se do caminho, e
desde então vai se afastando dele, homo sapiens talvez, eu não sei, ou eu posso
ser um homem errante um bêbado latente um velho de trinta anos que não se
encaixa em lugar nenhum e tem pensamentos equivocados sobre as coisas, num
mundo onde os cavalos não param pra cagar.