uma vez uma criança me disse "eu gosto de andar de moto
com papai porque o vento balança meus cabelos" aí eu fico imaginando
aqueles fios louros e os cachinhos se desfazendo no ar, com os olhos
lacrimejando e sentindo uma felicidade maior que a pele. mas isso foi a muito
tempo, e ela não deve ser mais criança, e o vento não balança mais meus cabelos
também, mesmo porque eu nem tenho mais tanto cabelo assim, e o tempo vai
passando, as engrenagens já não funcionam como antes, e são tantas coisas que
acontece com você que já não se lembra mais delas, e o passado parece estar a
galáxias de distância. eles me dizem pessimista, mal-humorado, as pessoas me
perguntam o tempo todo "Caseiro o que há de errado meu chapa?" mas a
verdade é que eu não consigo ver nada de certo, devo estar ficando louco, um desviante,
isso porque eu escuto vozes na minha
cabeça, mas elas não tem nada a dizer, aí eu fico quieto, olhos e ouvidos
trabalhando mais que a boca, e cabeça trabalhando mais que tudo, é o que faz o
tempo passar, as vezes tão depressa.
aí no meio desse furacão todo que é a vida, ela aparece,
primeiro de mansinho, em lugares inusitados, esbarrando no entre livros na
biblioteca, depois no café, ela me pede um cigarro, acende com um isqueiro
rosa, e quando ela guarda na bolsa eu posso ver, um maço de cigarros novinho,
ela levanta a mão e diz seu nome, eu pego a mão dela, dou um beijo leve e digo
o meu nome, ela diz que eu sou estranho, diferente, eu digo que ela é a mulher
mais linda que eu já vi, e logo estaríamos subindo as escadas aos beijos e
apertos em direção ao quarto da sua casa, e por uma fração de segundos eu pude
notar um quadro na parede do corredor, e existia um igual na casa da minha avó
e fez ter um sensação de nostalgia. fazer amor com ela era como abraçar um relâmpago,
essa garota tinha o corpo elétrico.
mas também isso passou, e o tempo levou, e seu corpo agora
deve estar surrado como o meu, e suas curvas se tornaram longos horizontes, e o
brilho da luz dos olhos não brilha mais com tanta intensidade, mas de tudo isso
eu não me preocupo, nenhum pouco, porque meu corpo é uma casca que minha alma
veste pra não morrer congelada nesse mundo tão frio, e um dia a morte vai abrir
o zíper e minha alma vai poder levar minha consciência pro lugar onde ela pertence,
e essa sim está nova, novíssima, como a consciência de uma criança com
cachinhos dourados andando de moto pela primeira vez.